Todos os dias saio cedo de casa. Durmo a correr, como a correr, ando sempre a correr. Tenho constantemente a sensação de estar atrasado para qualquer coisa. Gostava que a estrada fosse só para mim, que não tivesse stops, semáforos ou peões. Ou que toda a gente se arrumasse à minha passagem, de conduzir um veículo prioritário ou de ser escoltado por batedores.
Nestas filas intermináveis tenho tempo para tudo menos para quase tudo. Sobra-me apenas a possibilidade de vaguear o olhar e de praguejar baixinho. Olho para a esquerda: um carro; para a direita: outro carro; atrás outro e à frente um monte deles. Carros por todo o lado. Os outros farão igual. Vê-se na cara deles. Estarão a pensar no mesmo que eu. Todos mortinhos por saírem daqui. Que raio! O que é isto? Ora bem, meia hora para lá, outra para cá, dá uma hora por dia no trânsito. Ao fim de um ano são cerca de 10 dias aqui enfiado, ou seja, duas semanas. Bolas! O equivalente a umas boas férias… Que é isto, meu Deus? E ao fim de uma vida de trabalho ficarei aqui um ano inteirinho.
O que vale é que gosto do que faço. O que fará daqueles que se levantam em agonia, já a pensarem no regresso a casa? Com certeza que não praguejarão baixinho. Nem terão grande motivação para se dominarem. Aliás, o que é que os move? Como é que é passar toda uma vida a fazer o que não se gosta? Como é que se aguenta isso? Não pode ser! Tem que se quebrar por algum lado. Não é possível suportar tamanho inferno por tanto tempo. Não admira que volta e meia alguém desatine. E, se virmos bem, o desatino dá-se por causas muito pouco naturais à criatura humana: a culpa é desta organização social, deste modo de viver tão… Tão… Sei lá! Tão estranho, talvez. Quem é que inventou tudo isto, toda esta estranha forma de vida em que cedemos a nossa liberdade a não sei bem o quê?
Sim, escolhi o meu trabalho, sou um privilegiado. Escolhi os meus lugares, os meus amigos, a minha família e até o meu nível económico, mas o preço foi e tem sido alto: sacrifico tempo, amigos, família e mesmo a minha liberdade. Daqui a uns anos receberei uma medalha de bom cidadão, que trabalhou, produziu e aceitou calado as vicissitudes da cidadania que, atenção, tem coisas boas (pelo menos aqui dentro não levo com chuva). "Aqui jaz um bom cidadão" - escreverão um dia em letras garrafais e bem ornadas - "agora como dantes, calado."
Realmente, esta cidadania pacífica e silenciosa tem a bondade de um boi: rumina lenta mas constantemente e o tempo passa ruminando. Nada contra, vá! Há que olhar para as vantagens da ruminação. Eu rumino, tu ruminas, eles dão-nos palha e nós continuamos a ruminar. Como se a escolha não fosse minha.
Sim, foi escolha minha: aderi às regras do jogo porque quis, porque lucro com isso, porque posso abandonar tudo mas não quero. Sou feliz assim, acho eu. Gosto do que faço, tenho uma boa família e bons amigos. Tenho liberdade também, acho eu. Mas continuo preso no trânsito.
Joel Cunha