O início de mais um dia leva-o, inevitavelmente, ao ritual diário. Olha-se ao espelho e verifica o seu aspecto, o seu fato cinzento impecavelmente bem passado, a camisa engomada e uma gravata da moda.
O único senão naquele quadro tão bem produzido era as suas olheiras; mesmo com camadas de creme para as disfarçar, eram perceptíveis. A desculpa da farra da noite anterior teria de pegar mais uma vez.
O dia decorria com alguma normalidade e antes que os primeiros sinais de ressaca se manifestassem, levou-o a mais um gesto rotineiro e vital, procurar no bolso aquele saquinho que continha a “alavanca” que o empurrava para a vida e o fazia sentir capaz de tudo.
Não o encontrou no local habitual; com a pressa deve tê-lo colocado num outro bolso… Nada… Como os seus movimentos começavam a deixar transparecer o seu nervosismo e a sua ansiedade, um colega que o observava perguntou: “- Está tudo bem?”
Como poderia estar tudo bem? Como? Começava a precisar urgentemente da sua dose, as mãos começavam a tremer, o pânico estava a dar-lhe vontade de vomitar. Tinha dentro de alguns minutos uma reunião com o seu Director e já não conseguia pensar em mais nada, precisava apenas daquele líquido “milagroso” a misturar-se com o seu sangue e fazê-lo sentir-se vivo outra vez.
Começou a ver a sala andar à roda e inevitavelmente um “piloto automático” assumiu o controlo das suas acções.
Sem pensar em mais nada saiu disparado em direcção a sua casa; lá com certeza iria encontrar o que tanto precisava para conseguir acalmar e sossegar a “histeria” que sentia interiormente.
Entrou em casa e procurou no seu secreto esconderijo o saquinho que continha o seu “melhor amigo”. Vasculhou tudo, remexeu em tudo, mais do que uma vez e nada.
Sentia a cabeça a rebentar, os pulmões a asfixiarem e o coração batia de tal forma que parecia que iria explodir. Estava já sem capacidade para raciocinar, tinha as suas forças todas canalizadas num único sentido, onde, para onde e de que maneira iria conseguir a dose de heroína que tanto necessitava para voltar ao “normal”?
Sem hesitar dirigiu-se àquele local onde, é sabido por todos, se encontra com facilidade qualquer espécie de estupefaciente. Num rápido trocar de mãos teve finalmente em seu poder o seu “precioso paraíso”.
No primeiro local que lhe pareceu minimamente resguardado, preparou a substância que dentro de segundos e após ter perfurado uma veia, injectou no seu corpo. E esperou que o efeito se apoderasse dele e o trouxesse “de volta”.
Quando finalmente ficou no controlo da situação viu que, mesmo ao seu lado, estava um rapaz, talvez da sua idade, com um aspecto imundo e subnutrido, ainda com a seringa espetada no braço.
Aquele rapaz com quem partilhou o passeio e por quem, no primeiro momento, sentiu algum desdém, era um espelho de si próprio.
O que os separava era apenas a distância de umas roupas lavadas e um aspecto cuidado, porque ambos partilhavam um olhar raiado, uma vida condicionada e dependente e uma solidão desoladora, ainda mais perigosa que os efeitos da droga.
Susana Cabral
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