São exatamente seis da manhã. A neblina matinal entranha-se pelo top de Carmo e arrepia a pele do decote. Pedro repara imediatamente nesse pormenor, na entrada da namorada na sua carrinha. Se pudesse, neste preciso momento, deitava-se com ela no meio da rua ainda deserta.
– Não tens frio?
Silêncio. Óculos de sol a caírem pelo nariz, cabelo ainda húmido da sua saída do banho da manhã – manhã ou madrugada? A rapariga encosta a cabeça para trás. Olha para ele, sentado ao volante. Sorri.
– Se vamos para a praia, não vou de camisola, certo?
Não se recorda de ver Carmo a horas de alvorada; afinal, nem uma noite de comunhão partilhada em lençóis brancos de hotéis: as únicas oportunidades encontradas surgem quando o irmão mais velho dele se lembra de passar fins de semana fora “Juras? E não vai aparecer ninguém? E podemos lá ficar as horas que nos apetecer?”, às vezes, muito raramente, na casa de um ou de outro. Normalmente, nessas noites, o amor deles é como que sumo: quanto mais condensado, mais doce.
Pedro liga a ignição. Aumenta ligeiramente o volume de som do autorrádio, que lança para o ar fresco um som qualquer de batuque: como que um ritual, a viagem exige uma banda sonora, por enquanto apenas em surdina. O primeiro dia exclusivamente para eles. O Primeiro Dia. Ela e ele. Ambos. Os dois e uma carrinha. E o sol a benzer em lanços fugazes de luz que encadearão o caminho até ao Destino dos namorados, que apenas querem ser felizes até ao cair da noite porque, quando esta vier, eles já dormirão no leito deles. Nessa noite, Deles. Sem caminho planeado, mapa fechado em seis, duas mochilas no banco de trás, água mineral próximo ao travão de mão, os calções de Pedro a apertarem as pernas lisas e perfeitamente definidas, ainda brancas, aguardando um escaldão.
– Ora bem, querido namorado… Para onde vamos?
– Vamos procurar a nossa cama.
A autoestrada é o caminho mais rápido para todos os locais; não é exceção neste passeio; a diferença das outras viagens é que não sabe qual saída escolher. Até lá, percorrem quilómetros de eucaliptos que emolduram o trajeto, algumas zonas industriais, uma vivenda de imigrantes.
– Não sejas preconceituosa, Carmo. Pode ser simplesmente uma casa de alguém com muito mau gosto.
A rapariga abre a janela e deixa a sua mão sentir o ar que se pressiona contra ela. Abre-a como se de uma asa se tratasse e deixa-se estar assim, cantarolando com o CD. Pedro dá-lhe um estalo, aqueles estalos de ternura como se desse a uma criança, o mimo de quem olha para quem ama. Ela sacode a face, ri-se.
- Está quieto.
São ultrapassados por um furgão que carrega flores, trazendo cor à vista. Pedro abre a sua janela como se procurasse o aroma primaveril – ele, claramente, é Verão, mas com ela aprendeu a gostar as flores. Como a ela. O cabelo cai-lhe pelos olhos; puxa-o para trás com aquele tique tão habitual nele, tão bonito para Carmo. Olha-o como se nunca o tivesse visto.
- De manhã és giro na mesma.
- E não tomei café, senão ver-me-ias mais luminoso.
- És tão vaidoso! – A gargalhada de quem ama, como uma mãe que admira o filho em todos os seus ângulos. Se pudesse, fundia-se com ele.
E de repente, a música Deles.
- Espera, Carmo! Vou pôr mais alto. Esta é para ti.
Um atrelado de cavalos e uma mota que corta o horizonte à velocidade da luz. A carrinha ultrapassa várias indicações, inúmeros acessos, mas mantém-se permanentemente na autoestrada que os irá levar à paixão que chama por eles há tanto tempo – uma eternidade! Um grito de liberdade sem que eles sequer percebam.
- Saímos nesta?
- Sempre apressada. Temos tempo.
- Quero praia, Pedro…
- E eu quero-te a ti.
Carmo encosta a cabeça no ombro dele que, qual adolescente que quer ser homem, opta por conduzir apenas com uma mão e agarra a perna da namorada com a outra. Se assim pudessem, viveriam este momento de uma forma quase que eterna. Quem sabe, depois desta viagem, nem regressem.
O pico do calor no final da manhã despe o top de Carmo, que, sem pudor, se assume como ela mesma é: naturalmente bonita.
- A tua pele estava arrepiada quando entraste aqui.
- Agora estou com calor.
- Também eu. Segura aí o volante que eu vou tirar a t-shirt.
Uma viatura da manutenção pisca em tons laranja que se misturam com prados de cor agreste. Uma vaca pasta por ali, na rapidez de um olhar. Um aqueduto ao fundo e vontade de molharem os seus corpos em uníssono.
- Vira, Pedro. Vamos tomar banho.
Estacionam num descampado de terra batida que lembra um antigo campo de secagem de roupa lavada. E o rio ao fundo. A tabuleta indicando “Água Imprópria para Banhos” é como que transparente para os seus olhos. Correm como se fossem perder o autocarro, como se encontrassem o amante numa estação de comboios, como se tudo secasse à sua volta no segundo seguinte. Mergulham num batismo comum, soltando amarras, expulsando tensões, na superfície a libido e a ânsia de viver, os seus corpos pulando num ápice, respirando a pureza a quem nada devem, apenas a eles mesmos e à sua vontade. Flutuam durante minutos largos naquele pedaço de céu, que cheira a verde e a Liberdade. Ou Felicidade.
- Anda. Vamos lá sair daqui e secar ao sol.
Sofia Cruz