Tudo indica que tenha nascido da necessidade comum de enfrentar as outras espécies mais fortes, uma fórmula de sucesso na estratégia bélica primitiva. Hoje é uma lei ao abrigo do gregarismo, uma condição para a sobrevivência da espécie humana, a razão da nossa existência.
A ciência experimental provou que a prolongada privação de estimulação sensorial, leia-se ausência de contacto com o meio e com os outros, é difícil de suportar (dificuldade essa que pode ir do mero desconforto até à terrível alucinação).
A ciência social afirma que o Homem só se define enquanto inserido numa comunidade. Veja-se, por contraste exagerado, o exemplo da criança que foi encontrada errando sozinha, no Verão de 1798, na floresta de Saint-Sernin, no sul de França: o menino selvagem ou o selvagem de Aveyron ou, depois da densa injecção de humanização, o Victor de Aveyron que aos 12 anos não tinha ainda adquirido as competências essenciais da linguagem articulada, nem da locomoção aprumada. Vejam-se os outros 51 casos credíveis documentados na lista de Lucien Malson: a criança lobo de Hesse (1344), o enigma de Kaspar Hauser de Nuremberg (1828), o pequeno Ives Cheneau de Saint-Brévin (1963), etc..
Vejam-se ainda as desventuras que, com mais ou menos fantasia, parecem estar sempre coladas aos náufragos que acostam numa qualquer ilha isolada no meio do oceano, em geral do Pacífico.
Veja-se, por fim, o conceito de suplício associado à chamada “solitária” nas prisões.
Viver em sociedade tem por antónimo a solidão. E com que facilidade se enfia a solidão no saco das dores! O solitário sofre, está abandonado, rejeitado pela sociedade, desprotegido, exposto aos mais diversos perigos, tem medo, carrega todas as pesadas cruzes do penoso calvário da solidão.
A grande maioria das pessoas faz-se rodear de gente, quer habitando zonas habitadas, quer constituindo família, quer socializando com estranhos ou com gatos. Tudo indica, de facto, que esta é a organização natural do animal humano.
Mas será mesmo assim? Será a vivência social assim tão boa, necessária, útil e natural? Não será antes uma questão aprendida e transmitida de geração em geração contra a qual não tem havido grande debate? É que, contrariamente a este estado de coisas, há quem sobreviva, ou viva bem, no isolamento e até na reclusão. É o caso dos eremitas, anacoretas e ascetas, que optam por uma vida de recolhimento, meditação, sabedoria e paz; das irmãs seminaristas e dos monges de alguns credos mais ortodoxos, que entregam as suas vidas à causa religiosa; dos cansados da vida agitada que se voltam para outra mais rural e contemplativa; dos que deambulam sempre sozinhos nas grandes cidades.
A vida em sociedade, por outro lado, também não é fácil. Com tanta falta de civismo, tanto egoísmo, tanta lei da selva e do salve-se quem puder na mais moderna das metrópoles, faz-nos pensar sobre se é realmente este o estilo de vida que melhor serve a nossa espécie. Tanta violência doméstica, tanto divórcio litigioso, tanto crime passional só pode traduzir tensão e intolerância entre aqueles que são, ou outrora foram, significativos um para o outro. Agora imaginemos entre aqueles para os quais há absoluta indiferença: parece haver relação social sustentada por finos cordéis de boa educação e conduta. E o que é isto de educação? Nada mais do que a melhor das estratégias possíveis para aceitarmos e sermos aceites pelos outros desde o dia em que deixámos o nomadismo e nos tornámos sedentários, isto é, proprietários e capitalistas. No entanto a educação não é inata: é antes imposta, um decreto pela convivência.
Será que a vida dos isolados fica realmente em perigo? A companhia dos outros parece não ser, pelo menos em teoria, essencial à sobrevivência. É um pouco como a actividade sexual, que apesar de ser um impulso natural do qual não se escapa sem alguma resistência, não mata na abstinência prolongada.
Julgo que vivemos em sociedade porque nos habituámos a isso e esquecemo-nos que há tanta atracção do Homem pela sociedade, como do Victor de Aveyron pela floresta. Mas não temos muita escolha, pois não?
Smith