Na varanda do topo do prédio, olha as gaivotas livres e desafiantes, e sente na alma um desgosto profundo de não ser assim livre como elas.
- Dona Maria, bom dia!
- Bom dia, vizinha! Ainda em casa?
- Sim, hoje vou mais tarde para o trabalho! E a vizinha, vai ficar aí a ver as gaivotas? Vá dar uma volta senhora! Hoje até o sol veio espreitar…
- Talvez vá lá abaixo comprar qualquer coisita…
- Bom, tenho de ir… mas olhe, não se fie nas gaivotas! Elas só fazem troça de si… compre um bichano… até logo!
- Até logo… - suspirou a Dona Maria com desalento.
Dona Maria é uma típica senhora do bairro, divorciada, com uma filha, vive sozinha numas águas furtadas da capital. Está reformada, não por alguma incapacitação, mas porque a idade chegou e agora ela é apenas mais um número nas estatísticas. Passa os dias na pouca lida doméstica, mas para além disso, nada faz, para além de ver televisão. De vez em quando, toma café com uma das ex-colegas do serviço, mas isso já é raro. A família mora longe do furor da cidade e por isso só nos dias festivos é que há reuniões familiares. Dona Maria sente-se só, olhando da varanda um mar de gente. Mas, mais do que isso, sente-se inútil e sem vida. Sempre fora uma mulher cheia de vida, mesmo que a vida nem sempre tenha sido carinhosa com ela, porém o fim da vida activa tornara-a amorfa. Já não tinha um propósito, porque tudo aquilo a que a sua vida se resumia tinha acabado, ou seja, o trabalho. O resto já era hábito.
Nessa tarde, Dona Maria decidiu descer à civilização. Foi à padaria, ao talho e tomou um cafezinho na confeitaria da esquina. Estava ela sentada no seu recanto quando se depara com um folheto que dizia: “Precisamos de si!”. Aquela mensagem atingiu-lhe directamente o coração! Intrigada, desdobra o folheto e começa a ler. Tratava-se de um serviço de voluntariado, no qual pediam voluntários para trabalhar com populações desfavorecidas. Bastava ter um coração aberto, vontade de ajudar os outros e ter algum tempo disponível: “Dê um novo sentido à sua vida, ajudando os outros!”.
- Bem, tempo tenho eu! – pensou a Dona Maria.
- Vieram cá uns jovens entregar esses folhetos! – disse a empregada.
- Ah, sim?! Uns jovens… pois, eu já sou velha para isto – desabafou a Dona Maria.
- Velha?! Desculpe, minha senhora, mas não tem cara de velha! Por acaso tem 80 anos? Hoje em dia velho é dos 80 para cima!!! – reclamou a jovem empregada.
A Dona Maria soltou uma gargalhada.
- Muito obrigada minha filha, já me sinto jovem outra vez!
- Olhe, porque não experimenta? Os jovens disseram que precisavam de pessoas, e como a senhora tem tempo livre… - desafiou a empregada.
Dona Maria voltou ao seu refúgio, ainda imersa no folheto que trazia no bolso… tempo tinha ela… e coração com certeza… e precisavam dela. Havia algum tempo que sentia que não era precisa para nada. Olhou o telefone com receio. Ligo, não ligo? Ligou.
Passada uma semana, Dona Maria dirigiu-se ao centro de voluntariado. Ao entrar na porta sentiu um arrepio, como na primeira vez que foi a uma entrevista de emprego. Porque se sentia assim? Foi recebida calorosamente pela coordenadora e falaram sobre as actividades. Sentiu-se invadida por um sentimento de alegria inexplicável, quase como uma adrenalina, um pulsar nas veias. Saiu orgulhosa por ter entrado.
Hoje, a Dona Maria já não olha as gaivotas do topo da sua casa. Dedica o tempo que pode ao serviço dos outros e sente-se livre. Tem uma nova família e encontrou um lar nos colegas e nas pessoas que ajuda todos os dias. Sente-se útil e integrada de novo no mundo que outrora lhe recusava um lugar. Sente que a vida começou de novo, que ainda tem muito para dar. Tem também um novo companheiro de casa, o Tobias, que passa muito do tempo nocturno a vaguear nas ruas, mas volta sempre para escutar as inúmeras histórias que a dona tem para contar.
Cecília Pinto