O sol está a esconder-se, o dia está a acabar. Não gosto desta parte do dia, da parte que começa agora. Significa que tenho que ir para casa, assistir mais uma vez a todo um filme que já sei de cor.
Faço parte do elenco, é verdade, mas só até um dia. Até o dia em que eu seja maior que ele, em que a minha raiva, o meu nojo me tornem um gigante. E nesse dia tudo vai acabar.
Eu sei que não tenho que lá estar quando ele chegar, mas também sei que se não estiver, elas vão sofrer por mim. Que vai ser contra elas que ele se vai virar mais uma vez. Que amanhã, para saírem de casa, vão ter que abusar dos cremes e pinturas para tentar disfarçar.
O corpo fica a doer, muito, muito pior que todos os trambolhões que já dei. Mas muito pior do que isso é a dor de cá de dentro, aquela dor que se sente, perto do coração, como se fosse real.
Às vezes imagino como seriamos se ele não existisse. Ou se ele não fosse dependente (palavras delas para explicar…).
Felizes, acho que seriamos felizes. Ir para casa era uma coisa boa, e não um pesadelo.
Não consigo sentir carinho por ele, nem pena, nem nada. Não sinto nada…
Não, estou a mentir… sinto com todas as forças do meu ser uma enorme raiva, um nojo, uma dor a que não sei dar um nome. A tal dor que sinto perto do coração…
Li um dia que de todas as más experiências se tira algo de bom. Não sei o que de bom há nisto, neste viver cheio de medo, de ódio… só sei que nunca irei ser como ele. Que nunca irei fazer aos meus nada que os magoe.
Sei que quando crescer elas vão ter orgulho em mim, porque vou conseguir ser aquilo que ele nunca foi.
Filipa Pouzada
(Imagem: Self-Portrait, de Francis Bacon, 1971)
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