14.10.11

 

Para os mais distraídos e para que não haja dúvidas, o melhor é dizê-lo de uma só vez: vamos todos morrer! É uma das maiores certezas desta vida e também uma das mais democráticas: toca a todos por igual e não contempla exceções.

Provoca algum transtorno, sim. Mas é inevitável, principalmente no fim da vida.

Já decorreram milhares de anos desde que começou a morrer gente e continuamos a saber muito pouco sobre este fenómeno. É como se fosse um departamento do conhecimento universal vedado ao Homem, um espaço de sabedoria sem janelas, um lugar de acesso altamente restrito.

Entender a morte parece-me, no entanto, mais simples que entender a vida, até porque é mais fácil falar daquilo que julgamos estar distante de nós. E tal como percebemos melhor o frio se experimentarmos o calor, talvez encontremos o sentido da vida se nos aproximarmos da morte.

Plagiando uma ilustre conhecida dos nossos tempos, "estar vivo é o contrário de estar morto". A vida deve ser, em teoria, tudo aquilo que a morte não é. Assume-se que a vida e a morte ocupam pólos opostos, entretanto, são as duas faces da mesma moeda.

Há pessoas que estão vivas mas não se nota nada. Outras, porém, que já morreram há muito mas ainda se fazem presentes.

Não sei o que é estar morto, logo, também não sei o que é estar vivo. Só sei que a vida se compõe por muitas mortes, como se todos os dias fossemos morrendo um pouco mais. Nascemos, crescemos, tornamo-nos autónomos e às tantas traçamos para nós um plano, uma rota, uma série de caminhos que queremos trilhar: ser saudável, estabilizar as contas, constituir família, envelhecer em paz, por aí fora. Mas não há caminhos sem obstáculos. Uns maiores que outros.

Viver é seguir caminho. A cada obstáculo deixamo-nos morrer. Vamo-nos aproximando gradativamente da morte final através de experiências menores de morte: quanto de nós morre quando parte algum dos nossos? Quanto vivos ficamos depois de um desastre amoroso? Quantas vezes morre uma mãe até que o filho se endireite?

Viver é seguir caminho, de novo. De cada vez que recuperamos de uma dificuldade, a vida continua. Mas entretanto a vida ficou adiada.

Gostaria de perceber qual é a utilidade da morte. De que me serve a finitude? Ter essa espada sempre por cima da cabeça cansa e não me traz qualquer vantagem. Pior: para que me serve ir morrendo aos poucos se posso fazê-lo de uma só vez?

Este procedimento padrão de morrer sempre que se vive é muito estranho. Faz-me pensar que se vamos morrer, então mais vale não me dar ao trabalho de viver. Mas aí começo a equacionar as desvantagens de morrer, que devem corresponder às vantagens de viver, e concluo que ainda não me apetece falecer.

Afirmar que os obstáculos fazem parte da vida parece-me poético. Os obstáculos fazem é parte da morte. Para viver temos que estar sempre a contornar, a enganar e a fugir à morte. Voltamos à vida tantas vezes quantas as vezes que morremos, e o mais certo é essa nova vida ser diferente da anterior.

Em função desta definição é provável que encontremos mais gente morta que viva, porque quase ninguém escapa aos obstáculos. Os conceitos de vida e de morte podem afinal não ser tão opostos quanto se julga. Estar vivo pode não ser o contrário de estar morto. Pode a morte ter sentido se não incidir sobre a vida? Então a vida só fará sentido se for vivida em função da morte, nos momentos em que nos autorizamos a escapar-lhe.

 

Joel Cunha

 

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