O tempo é relativo e não pode ser medido exatamente do
mesmo modo e por toda a parte.
Albert Einestein
Sobressaltado, instinto de defesa em alerta, senta-se no catre. Do corredor chegam-lhe vozes que gritam não sabe o quê. Parece-lhe que choram mas ao choro sobrepõem-se vozes que parecem zangadas. Aproximam-se com passos rápidos e tão coordenados que parecem um só. Estão perto, cada vez mais perto. Um pontapé e escacaram a porta, entram bruscamente. Os gritos são ordens para se levantar. A tremer, de medo e frio, veste o que se imagina já ter sido uma camisola e, sempre em andamento, enfia as pernas numas calças esfarrapadas. Está assustado, o catre e o lugar exíguo, mal iluminado com ratos a disputar a vida com os homens, parece-lhe agora um lugar seguro. Quer recuar para esse lugar seguro mas é empurrado para a frente, para o corredor que é tão escuro como o cubículo de onde foi expulso. Quer fugir dali mas as pernas não cedem. E se cedessem para onde iria? Sente-se desfalecer. Uma mão segura a sua e aperta-a com força. Reconhece essa força, mantém-se direito com a dignidade que o pai lhe ensinou. Caminham de mãos dadas. Duas mulheres seguem à frente. Uma, a mais velha, está tão vergada pela dor que em altura se nivela pela mais pequena. Também elas caminham de mãos dadas. Ouve-as sussurrar e a voz que lhe chega acaricia-lhe a alma. A porta no fim do corredor dá para dois pátios, os homens vão para o da direita, as mulheres para o da esquerda. Ele larga a mão do pai, quer acompanhar a mãe e a irmã, mas a mãe repele-o e empurra-o para o lado do pai. Quer chorar mas as lágrimas não saem. Aguenta tudo e tudo não tem sido pouco, mas ser rejeitado pela mãe causa-lhe uma tristeza de morrer. Debate-se para ficar junto dela, agarra-lhe o vestido mas ela vira-lhe as costas.
O seu nome gritado fá-lo sentar-se na cama. Está alagado em suor e lívido de terror. Mais um daqueles pesadelos que há de acabar com ele. Durante anos as cenas de terror vividas no campo estiveram agrilhoadas na sua memória. Aprendeu a relevar o que fizeram com ele e com a sua família porque considerava que, mais importante do que aquilo que lhes fizeram, era o que ele iria fazer com isso. Conseguiu viver com alguma normalidade até ao dia em que revisitou o campo. No corredor que percorreu com os pais e a irmã e que haveria de os separar para sempre, a fotografia da mãe acariciou-o com o olhar. Se ao menos ele lhe pudesse agradecer pela vida que ela lhe salvou! É que, ao afastá-lo para o lado do pai, ela sabia que lhe salvava a vida porque os homens eram aproveitados para trabalhar, as mulheres eram fuziladas mesmo ali.
Memórias que o tempo não apaga.
Cidália Carvalho