Minha infância foi longa, arrastada e eterna, como um esses filmes que a gente não tem como sair e tem que ficar assistindo até o final.
Do muito que me contam sobre a magia da infância, não conheci. Crianças correndo soltas na sua inocência, sua ingenuidade e no seu deslumbramento pela vida, essas crianças nunca cruzaram minha vida.
Na vida real eu era massacrada todos os dias por elas, perseguida e humilhada. Eu era alta, usava óculos, era gorda e tinha um defeito terrível, só gostava de livros, nada me interessava além deles.
Para piorar não era boa em nada, nada, nada, era um desastre natural, péssima em matemática, esportes, em qualquer tipo de concurso.
E digo sem vergonha a melhor parte da minha infância foi quando acabou. Mais um dia nessa tortura e eu não teria sobrevivido.
A vida adulta para mim é o paraíso. Se alguém fala mal de mim ou tira sarro, faz isso pelas costas, coisa que agradeço. Se alguém tentar me humilhar, eu devolvo na hora, sem medo de ir para a sala da diretora.
Hoje brinco o que não brinquei, como a sobremesa antes do almoço, mando a merda quem não mandei e sou livre, exatamente como dizem que as crianças são.
E não acredito mais em historinhas com final feliz, hoje sei o peso da crueldade infantil, sei que as crianças trazem seu ódio líquido e os adultos fingem não perceber. Alguém vai correr e dizer ''Mas isso não é ódio líquido, crianças são inocentes e dizem o que pensam!''
Ora e desde quando dizer o que se pensa é apropriado se envolve a opinião sobre outra pessoa?
Muito se pode falar sobre a inocência ou crueldade das crianças, mas eu senti na pele a maldade, ao contrário de muitos que ficaram com trauma de adultos, eu tenho trauma de crianças.
Anos atrás aconteceu uma coisa estranha. Eu procurava um livro sobre teatro infantil e achei em um sebo um livro de contos ingleses, escrito no começo do século XX.
Não consigo lembrar o nome do livro e fiz uma coisa que não se faz nem por decreto, emprestei ele e nunca mais o vi.
Mas as histórias ficaram tatuadas na minha mente, nunca esqueci. Eram contos sobre crianças, nunca li nada parecido aquilo.
Em um dos contos um menino acha duendes no seu jardim, resolve atrair eles a casa de bonecas de sua irmã e acaba aprisionando os duendes e se diverte por meses torturando eles, deixando eles passarem fome, sede e medo.
Outro conto que nunca esqueci foi da menina que acha fadinhas no seu jardim e faz amizade com elas. Um dia pede as fadas que coloquem flores no seu cabelo e as fadas se recusam a fazer isso. A menina não pensa duas vezes, corre a sua casa e volta com uma tesoura e corta as asas de todas as fadinhas.
Foi a primeira vez que li uma coisa assim sobre crianças, um texto relacionando infância e crueldade. Cresci lendo livros fofos, meigos, cheios de crianças sapecas e curiosas, nunca tinha lido nada igual.
Lamentei profundamente que esse livro não tivesse caído nas minhas mãos quando eu era garotinha. Eu lia tanto e com tanto desespero que teria sido um alívio perceber que não era a única que tinha conhecido a crueldade infantil.
E curiosamente crianças me adoram, mas isso acontece porque elas são espertas e sabem quem são as pessoas só de olhar. Elas olham para mim e podem ver no fundo da minha alma, sabem que eu sei o que elas estão passando e não sou outra adulta a dizer que tudo na infância é mágico, em silêncio elas percebem que eu conheço o inferno que algumas passam. E sobreviventes são assim, se reconhecem no olhar.
Iara De Dupont