Foto: Scenic Park – Mann Ngohayon
…
e os barcos passam a ser um e um
onde uma vez quiseram quase ser dois
e a tempestade deixa o mar encrespado
por isso cuidado
mesmo muito cuidado
que é frágil o pano
que veste as velas do desengano
que nos empurra em novo oceano
frágil e resistente ao mesmo tempo
…
Mudemos de assunto; Sérgio Godinho
- Desculpa interromper mas necessito de fazer um ponto de situação, para não me perder – se é que não estou já perdido.
- Está bem.
- Afirmas ser um homem que reconhece as emoções, a sua importância e valor, entre elas, o medo. Afirmas saber como passar das emoções, trabalhando-as, aos sentimentos. Afirmas que ao longo da tua vida apenas tens tido um medo, sentimento maduro, trabalhado – o do sofrimento físico por força duma doença grave e prolongada. Mas de há algum tempo a esta parte tens um novo e inesperado medo, que tem vindo a crescer e a consolidar-se: o medo de não conseguires amar. Como sabes, já vi e ouvi muita coisa no que a emoções e sentimentos respeita e, nesse campo, encontro medo da solidão, medo de não ser amado, por vezes medo do abandono. O medo de não conseguir amar é, para mim, uma novidade e, talvez por isso, não o entendo. É isto ou perdi-me pelo caminho?
- Sim, meu caro, é isso.
- Mas de onde vem, então, esse medo de não conseguires amar? E como é ele?
- Vem de amar, com toda a energia, com tudo o que amar implica, contemplar, desejar, acarinhar, mimar, proteger, honrar, elogiar, valorizar, estimular, incentivar, ajudar, partilhar, conciliar, perdoar, agradecer, com entrega, com convicção, com respeito, etc., mas sentir não ser o amado, não ser o amante nem ser o desejado, ser colocado num lugar subalterno no qual se reconhece um valor de segunda escolha, nunca suficiente e nunca justo. Não ser estimulado, nem incentivado, a quem não se agradece, com o qual há coisas que não podem ser partilhadas. E apesar disso, continuar a amar, amar sempre, por força do impulso e da razão, combinação que carateriza o amor. Recomeçar, sempre. Mas ir perdendo energia, progressiva e irremediavelmente, que nunca será recuperada, que nenhum processo comunicacional conseguira resgatar. E é nesta perda progressiva de energia que o medo surge, sorrateiro, ganhando espaço. Pode chegar o dia em que não consiga mais amar. E essa ideia é terrível. Poderei ser abandonado, conseguindo recuperar ou não, mas disso não sinto medo. Poderei ficar só e daí resultar dor, mas sempre exercitei a solidão, sempre desenvolvi a capacidade de estar apenas comigo, daí que disso não sinto medo. Poderei não ser amado – aliás, não sei se o sou, mas não faço disso uma exigência e, talvez por isso, não sinto medo. Mas tenho medo que chegue um dia em que não consiga amar. O que serei eu nesse dia e nos que se lhe seguirão? O que valerá, então, a minha vida, a minha existência?
- Sim, agora entendo… E não sei o que replicar.
E em silêncio continuaram, em passo sereno, ao longo do parque.
Fernando Couto