Juntei-me ao grupo no preciso momento em que António acusava um dos amigos de ser racista por se opor ao casamento da filha com um homem de outra raça.
O outro defendia-se dizendo que isso não era racismo, era evitar um final infeliz porque ao putativo noivo ser-lhe-ia muito difícil aprender a cultura e o modo de viver da filha e da sua família.
- Mas, porque é que há de ser ele a ajustar-se à cultura dela e não ela à cultura dele? Perguntava António.
- Porque ela pertence a uma sociedade mais desenvolvida e o nivelamento deve ser feito por cima e nunca por baixo. Respondia o outro.
As considerações à volta do tema prosseguiam com um a defender-se das acusações do outro, e este outro, a defender o noivo com tanto paternalismo que, não deixava margem para dúvidas, revelava não lhe reconhecer capacidade para resolver os seus próprios problemas.
Percebi da discussão que, no imediato, os jovens de que falavam, para poderem ser um casal, teriam que matar o passado de um deles. Um deles, o mais fraco aos olhos da sociedade, teria que renunciar a tudo o que foi no passado e recomeçar numa nova comunidade sem história pessoal, familiar e cultural. Mas se no imediato essa seria a solução, por quanto tempo ela serviria? Quanto tempo levaria para que o amputado de identidade e referências se revoltasse e exigisse a reparação dos danos?
Fujo de discussões inflamadas. Os contendores não ouvem nem se fazem ouvir. Não pretendem aprender mais do que já sabem, se é que sabem alguma coisa, e todo o esforço é para que no final da discussão o adversário acabe vergado. As discussões acabam no ponto onde começaram, nas certezas inabaláveis de um conhecimento acima da normalidade. Não há vencedores nem vencidos, apenas intolerantes travestidos de grandes conhecedores de causas e efeitos.
Mas esta discussão teve a particularidade de me transportar até Moçambique, onde vivi há cerca de 30 anos. Perdi-me nas minhas memórias e revivi a chegada a um país recém saído de um sistema colonial. Fui para lá com um objetivo diferente do dos meus antepassados, estava empenhada no processo de renascimento de um novo país e era importante mostrar essa diferença. A minha empregada foi convidada a comer à mesa mas, o que para mim era natural, a ela causava-lhe um enorme constrangimento, de tal forma que não conseguia comer. Quando as refeições terminavam sentava-se no chão da cozinha e comia a dose de arroz como sabia, com as mãos. Lembro-me de que decorei o chão da minha casa com esteiras. Mais ou menos coloridas, simples ou trabalhadas, cumpriam na perfeição a função de tapetes. O problema é que a Laurinda, assim se chamava a minha empregada, não passava por cima delas. Só percebi porquê quando soube que a cama dela era uma esteira, naturalmente que ela não pisava em cima da cama, eu também não ando em cima da minha. Com o tempo deixei de estranhar e aprendi a gostar do pano que a envolvia e que dava pelo nome de capulana. Admirava as figuras geométricas feitas na carapinha e não lhe criticava os sulcos feitos no rosto tão usuais na sua tribo de origem.
A esta altura das minhas recordações já os meus amigos se espumam de ira e paixão na defesa dos seus pontos de vista que, no meu entender, não são muito diferentes. Se não estivessem tão exaltados já teriam percebido que estão muito próximos um do outro na reação às diferenças, um declara abertamente que quer distância dos que são diferentes, o outro defende-os com tal fundamentalismo que é tão triste e assustador como o primeiro.
As diferenças provocam-nos curiosidade, mas na hora da decisão, optamos por favorece o que nos é próximo e semelhante, mas isso não deve diminuir ninguém. Por mais beleza que visse nas trancinhas e nas capulanas da Laurinda, optei por me manter fiel aos meus cabelos lisos e a usar calças e saias; na época, como agora, não me imagino a comer arroz com as mãos, sentada no chão da cozinha. A minha curiosidade pela cultura e tradições da Laurinda nunca passou de observação, admiração em alguns casos, mas em todos, muito respeito. E foi assim que viver em Moçambique resultou numa sã convivência e numa experiência gratificante.
Não contei aos meus amigos as minhas recordações, são apenas pequenas experiências sem significado nem importância para a resolução do racismo no mundo.
Cidália Carvalho