Foto: Sem Nome – Peter Griffin
13 de novembro de 2015, uma sexta-feira. Num restaurante no centro da cidade da Maia, encontro-me rodeado de amigos e família que, em poucos minutos, vão-me cantar os parabéns. A mesa está disposta num T grande e eu encontro-me de costas para a televisão. Do nada, algumas expressões transitam. Da alegria e boa-disposição para algo diferente. Rodo cabeça e ombros, permitindo a visão de algo que não compreendi de imediato. Apenas a legenda em rodapé ajudou. A contagem, nesse momento, iria em menos de 20 mortos.
Entre os convivas, a palavra do dia – parabéns, foi sendo substituída por outras. Filhos da puta, terão sido das primeiras. Lembro-me de pensar que, felizmente, tinha feito anos no dia anterior. A minha data de nascimento não ficou marcada para sempre.
Nos dias seguintes muitas outras palavras e frases entraram no léxico diário do meu grupo próximo. Isis, terroristas, Paris, foto de perfil do facebook, vítimas, outros países, refugiados, fronteiras, controlo, execuções, perseguições e… medo.
Levantaram-se vozes apaixonadas e geraram-se conversas quentes, principalmente quando se falava de pessoas e migrações.
Eu, por estes dias, sabia que teria de entregar um texto sobre o medo. Evidentemente decidi que o mesmo teria como fundação o 13 de novembro. Hesitei, confesso, de mais. Hesitei tanto que falhei rotundamente a data de entrega do mesmo. Tive medo. Tive medo das minhas opiniões coladas a imagens de corpos. A histórias que foram surgindo logo nas primeiras horas. Histórias de pessoas. Como eu e tu. Pessoas que foram colhidas numa espiral absurda e desumana, de uma guerra que não é delas.
Conclui que, mesmo passados muitos dias, o texto não seria sobre o malogrado dia. Penso que já escrevi, noutro texto para este blogue, que detesto o politicamente correto. E por aqui me fico sobre o tema.
Contudo, sobre o medo não escrevi.
Por mera sorte (porque a expressão ajuda divina não serve evidentemente para este texto), o problema resolveu-se por si. Finda uma auditoria aos meus serviços, sem medo, diga-se, meti-me no carro e dirigi-me a casa. Antena 3 como ruído de fundo e o anúncio de uma música desconhecida, de uma artista conhecida. “Medo do medo”, da Capicua. Ri-me. Aumentei o volume. Prestei atenção. Peço-vos o mesmo.
Ouve o que eu te digo,
Vou-te contar um segredo,
É muito lucrativo que o mundo tenha medo,
Medo da gripe,
São mais uns medicamentos,
Vem outra estirpe reforçar os dividendos,
Medo da crise e do crime como já vimos no filme,
Medo de ti e de mim,
Medo dos tempos,
Medo que seja tarde,
Medo que seja cedo e medo de assustar-me se me apontares o dedo,
Medo de cães e de insetos,
Medo da multidão,
Medo do chão e do teto,
Medo da solidão,
Medo de andar de carro,
Medo do avião,
Medo de ficar gordo, velho e sem um tostão,
Medo do olho da rua e do olhar do patrão e medo de morrer mais cedo do que a prestação,
Medo de não ser homem e de não ser jovem,
Medo dos que morrem e medo do não!
Medo de Deus e medo da polícia,
Medo de não ir para o céu e medo da justiça,
Medo do escuro, do novo e do desconhecido,
Medo do caos e do povo e de ficar perdido,
Sozinho,
Sem guito e bem longe do ninho,
Medo do vinho,
Do grito e medo do vizinho,
Medo do fumo,
Do fogo,
Da água do mar,
Medo do fundo do poço,
Do louco e do ar,
Medo do medo,
Medo do medicamento,
Medo do raio,
Do trovão e do tormento,
Medo pelos meus e medo de acidentes,
Medo de judeus, negros, árabes, chineses,
Medo do “eu bem te disse”,
Medo de dizer tolice,
Medo da verdade, da cidade e do apocalipse,
O medo da bancarrota e o medo do abismo,
O medo de abrir a boca e do terrorismo.
Medo da doença,
Das agulhas e dos hospitais,
Medo de abusar,
De ser chato e de pedir demais,
De não sermos normais,
De sermos poucos,
Medo dos roubos dos outros e de sermos loucos,
Medo da rotina e da responsabilidade,
Medo de ficar para tia e medo da idade,
Com isto compro mais cremes e ponho um alarme,
Com isto passo mais cheques e adormeço tarde,
Se não tomar a pastilha,
Se não ligar à família,
Se não tiver um gorila à porta de vigília,
Compro uma arma,
Agarro a mala,
Fecho o condomínio,
Olho por cima do ombro,
Defendo o meu domínio,
Protejo a propriedade que é privada e invade-me a vontade de por grade à volta da realidade, do país e da cidade,
Do meu corpo e identidade,
Da casa e da sociedade,
Família e cara-metade…
Eu tenho tanto medo…
Nós temos tanto medo…
Eu tenho tanto medo…
O medo paga a farmácia,
Aceita a vigilância,
O medo paga à mafia pela segurança,
O medo teme de tudo por isso paga o seguro,
Por isso constrói o muro e mantém a distância!
Eles têm medo de que não tenhamos medo.
Medo do Medo, Capicua; 2012
Rui Duarte