Há precisamente onze anos, propus aprender a Amar-me. Quis muito acreditar que eu, assim como todos aqueles que gravitavam no meu universo, merecia o meu amor, o meu carinho e a minha atenção. Não sabia bem como fazê-lo, como alterar um registo viciado que alimentei (com a “melhor das intenções”, sempre por um “bem maior”), na exigência dos dias e dos outros: como dizer que estava cansada sem me sentir negligente, como dormir sem medo que o mundo pudesse desabar, como expressar vontades sem me sentir culpada, ou responsável, por tudo o que se passava à minha volta. Queria elevar-me e enraizar, dar passos mais seguros, mais serenos, com mais sentido, sem viver em permanente estado de alerta. Queria abraçar o mundo e os outros mas sem fantasmas e sem feridas. Não queria o salto narcísico que me colocasse num pedestal olímpico, de egoísmo e isolamento; mas desejava enamorar-me, perdidamente, de mim própria.
Ao longo de todo este tempo concluí que era, simplesmente, a tarefa mais difícil da minha vida. Constatei que, ainda que parecesse que eu escutava as minhas necessidades, na realidade, limitava-me a dar-lhes um paliativo quando o limite se fazia sentir; uma dose de energia suficiente para as calar, por mais algum tempo. Negligenciei os gritos de alerta, da alma e do corpo, até estes me estenderem ao comprido. Claramente, eu não estava num relacionamento sério com a minha pessoa e ela sucumbiu, perante os meus olhos, por falta de cuidados adequados. Dei voz a todos os que me feriram mas desalojei-os, da alma e do coração, um atrás do outro, até me sentir mais leve, mais forte, mais atenta em mim. Apenas em mim e no espaço que agora deixavam e que se inundava de paz.
A ti, ser que me gerou, a quem sempre supliquei migalhas, na expetativa de um amor que nunca encontrou eco; abraço-te hoje no perdão, com humildade. Não fujas dos meus braços nem rias, assim, desconfiada. Não sabes como é difícil abraçar alguém que amamos e que nos rejeita. Não aguardes no compasso de quem espera uma investida de um inimigo sem honra, antes de me reduzires a nada. Não quero mais essas guerras em que nos sabemos ferir, no mais fundo de nós, com o mais negro em nós. Escolho não lutar contigo, embora me tenhas ensinado a fazê-lo com mestria. Quero que saibas que continuo a amar-te, e que sempre to vou lembrar, mas já não espero que me ames de volta. Não numa medida que talvez seja só minha, e tu a sintas injusta e sem sentido. Mas também não posso continuar a olhar-te nos olhos e sentir-me sempre tão pequena, na amplitude castradora da tua fé. Preciso da paz que me saibas dar e de me libertar do jugo em que me permiti viver contigo, em nome do “amor”, enquanto me fazias sentir o pior dos teus castigos. Aceito-o, aceita-o também. Quem sabe, um dia, as pontes que queimamos, permitam novas pontes entre nós. E o “amor” possa ser Amor, sem aspas ou cobranças. Inteiro. Pleno. Quem sabe...
A ti, que me chamaste alma gémea enquanto me partias o coração, lenta e insidiosamente; encontra a tua paz e/ou vive na tua loucura, mas não sujes as minhas. Não, não mereces o meu perdão mas eu mereço não ser parte dessa história sórdida, a que chamas existir. Sinto-me tão orgulhosa por ter sabido amar-te na totalidade. Com tudo de mim. Mesmo sem o mereceres. Nenhuma parcela de dor, ainda por digerir, me tolda a alegria de continuar a acreditar, com cada uma das minhas células, no amor para lá do medo. Sobretudo, depois de ti. Gratidão, pela preciosa lição de vida: também te confundi com uma alma gémea.
A ti, que me gritaste na cara (literalmente, na cara), durante anos, fazendo da minha jornada laboral uma epopeia digna de um documentário sobre tortura e chacina mental, aceita a tua imagem refratada. Reconhece-te nos teus erros e na falta, afinal, de tanto Amor. Agora que o teu eco já não me atormenta as noites e as incongruências, pergunto-me se dormes tranquila, na reprise dos teus momentos mais desumanos. Se a frustração te acalenta as noites ou se a culpa te serve de almofada. Deve ser muito difícil ser quem és.
A ti que, mesmo sem me conhecer, te sentiste no direito de me insultar, de me ferir. Sim, tu. Que gastaste tempo precioso da tua existência a poluir a minha. Não te odeio, tão pouco teço planos cinematográficos que te aniquilem. É possível que nem te conheça também. A minha própria existência é um mistério que me vai levar o resto da vida para desvendar e sei que vou falhar, tantas vezes. Não tenho tempo para envenenar a vida dos outros ou opinar sobre as suas decisões, cada um de nós trava as suas próprias batalhas. Tu pareces já saber tudo, sobre tudo e todos. Claramente, não precisas de ajuda extra: já és o teu pior inimigo.
A ti, que despedaçaste o meu espírito com o medo e a vergonha, enquanto me ensinavas o quanto o "amor doía" e como eu era, afinal, uma menina "muito malandra"; jamais poderei explicar-te algo que nunca sentiste. Nem quero. Algo que validas, orgulhosamente, na tua vil existência, num ciclo interminável de dor e desespero. A vida não te ensinou nada mas, a mim, tem-me ensinado muito. Não, já não tenho medo de ti mas não te quero por perto. Na minha paz, tu não existes. Não fazes parte do meu presente. Caminhar sem ti às costas, e debaixo da pele, tem tornado a jornada incrivelmente mais leve.
A ti, que há muitos anos atrás me nomeaste a tua "melhor amiga", enquanto defraudavas os mais belos capítulos dos meus sonhos tornados realidade, mostraste-me o que um amigo de verdade nunca faria. Ensinaste-me que, apesar do meu amor pelas palavras e pelas pessoas, o meu léxico emocional estava claramente deturpado e que, ser Amigo, era algo extraordinariamente diferente, feito de camadas coesas, sustentado na lealdade e no amor. E que existe. Que a amizade verdadeira é esse amor, num estado tão puro e tão sublime que não pode ser comparado a coisa nenhuma. O que eu teria perdido se não tivesse aprendido tudo isto contigo.
A ti, que me sugaste a energia com a tua mera presença, que te impuseste inteira, egoísta, vezes sem conta; mesmo quando eu não conseguia tomar conta de mim própria e dizer não. “Tudo eu. Tudo eu. E…”, sim, diz que o mundo é mau, que tudo te acontece, que há um complô mundial contra ti. Tens direito à militância obtusa que te mantém no desespero crónico. Se podes ficar aí? Podes. Fica aí, o tempo que precisares. Mas já não me arrastas contigo para esse buraco a que chamas vida. Não sou responsável pelas tuas escolhas. Fui, sem culpa, olha para mim. Já nem te oiço.
A ti, que disseste que eu não era capaz, que nunca seria capaz, que me feriste de mil maneiras diferentes; quero que saibas que as minhas cicatrizes já não doem por dentro. Quero que saibas que já não me manchas a alma, que já não me sinto suja, mesmo nas rasteiras da memória que ainda não consigo evitar. Aceito-as e deixo-as partir. Uma de cada vez. Lentamente, sei que sou capaz. Por isso não te instales, nem limpes os pés na minha dignidade, só porque a mediocridade é uma língua que dominas. As minhas cicatrizes lembram-me que te sobrevivi. Lembram-me que não sou o que de mim levaste. Sou aquilo que não conheces. Sou tudo o que não foste capaz, sequer, de beliscar.
A todos vós, que gravitaram sobre mim e dentro de cada uma das minhas células, durante décadas, podeis partir. Já não vos quero. Retiro-vos o poder, que alimentei durante demasiado tempo, de envenenarem a minha existência com a vossa mesquinhez e as vossas frustrações. Hoje, olho-vos a todos na cara, sem medo, pela primeira vez: sois tão patéticos sem a minha força. Fui tão cega durante tanto tempo... Olhai bem para mim agora! Não sou o que resta de vós! Sou mais, sou eu, sou aquela que se ergue acima e perante vós, que renasce do vosso lodo, com a alma em expansão. Por isso, quando eu vos voltar as costas, não se atrevam a seguir-me. Não existe nada em mim que vos deseje.
Gritei tudo isto. Dancei tudo isto. Caminhei tudo isto. Escrevi tudo isto. Chorei, continuo a chorar, parte disto. Mas já consigo respirar fundo no abraço que aprendi a dar-me. Já consigo ver mais longe, dentro de mim. Quando tudo parece estar a desmoronar, as peças da minha verdadeira essência começam a encaixar-se e a dar novas cores aos dias e aos sonhos. Sinto-me renascer da mágoa deixada para trás, sinto-me crescer no poder que reclamo para mim. A jornada será longa e cheia de desafios, estou certa, mas pretendo vivê-la na plenitude que me liberta dos antigos cativeiros. Quero descobrir quem sou, com uma lente tão clara quanto o que em mim emerge da dor. Quero apaixonar-me por mim própria, quero cuidar-me, quero muito proteger a minha alma de tudo o que me possa magoar. Todos os dias.
Hoje, perdoo-me pelos meus erros. Afinal, ninguém me fez tanto mal quanto eu fiz a mim própria. Não vou entender tudo mas está tudo bem. Está tudo bem. Vai tudo ficar bem. Aceito-me como Sou. Sou digna de Amor. Sou Amor. Sou Imensa.
Alexandra Vaz