Sempre gostei deste canto da casa, um refúgio junto à janela mágica, onde contemplo a planície que se estende a perder de vista. Aqui sinto paz, sempre senti. Imagino que me diluo na paisagem, escondendo-me entre os girassóis imponentes, bailando nos braços do vento quente. Evado-me da vida que queima e voo solta dentro de mim.
Hoje não tenho os hábitos de sempre, estou tão perdida, não sei que rumo dar às horas. Dizem-me que tenho de voltar à vida mas apetece-me gritar que a única vida que conheci acabou agora, abruptamente. Hoje, a paz não me envolve. Cozinho compulsivamente, coloco o teu prato na mesa como sempre fiz, ornamento-a com flores e sento-me à tua espera. E depois choro, enchendo o copo do vinho que não vais beber, imaginando-te dentro do poço onde te encontraram duas semanas depois de teres desaparecido. Disseram-me que não foi a queda que te matou mas que morreste à fome. Gostava que me tivessem ocultado este pormenor. A imagem do teu sofrimento na minha cabeça atordoa-me. O fim. Pela primeira vez em muitas décadas desejei que tivéssemos tido filhos. Vida para além da nossa vida.
Conheci-te muito jovem. Mostraste timidamente interesse em mim e falaste com o meu pai, pedindo a minha mão em casamento. Achei o ato tão romanticamente ousado! Gostei do teu ar reservado, da tua tez morena de homem do campo, do teu corpo talhado para o trabalho, forte e frágil ao mesmo tempo. Pensei que debaixo dessa timidez inicial, se escondia um homem apaixonado, intenso, falador. Sonhei ser deslumbrada por ti, todos os dias, arrancada à monotonia de uma vida estéril e enfadonha. Desejei que me arrebatasses a alma amando-me o corpo. Demorei anos a perceber que sempre te havias mostrado tal e qual como eras. Desde o primeiro instante. Apenas a minha vontade cega de que os meus desejos se realizassem me impediu de o perceber quando devia. Ao fim de três anos de casamento, mornos -quase frios, senti-me absolutamente frustrada. Abalei para casa dos meus pais. Perguntava-me, incrédula, a minha mãe: “Ele bate-te? Trata-te mal? Bebe? Então, rapariga? Não entendo…” “Não, mãe, não. Sou infeliz. Vivo no silêncio de uma vida gritante.” Despacharam-me com um par de estalos bem assentes e o seguinte recado: “Volta para o teu marido. É ao lado dele que deves estar. Tem vergonha, tiveste mais sorte do que mereces.”
Regressei e nunca mais voltei a partir. Não me questionaste, não gritaste, não brandiste a espada do marido punitivo. Não escarneceste sequer do rabo que, nesse regresso, eu trazia entre as pernas… Adaptei-me a nós e fiz o possível por aprender a viver no teu silêncio e a decifrar as tuas nuances. Chamavas deleite a deitares-te em cima de rochas. À solidão acompanhada. Chamavas afeto às três vezes por dia em que os teus olhos encontravam os meus de forma acidental. Chamavas casamento ao ato de trazer uma aliança no dedo e de fazer amor, na maior escuridão possível, uma vez por mês, durante trinta anos. Sempre que saías de mim, deixavas-me mais vazia do que estava antes de me encheres de ti. Talvez por isso o meu útero nunca nos tenha brindado com vida. Chamavas algo a tudo menos a mim. Nunca fui “querida”, “amor”. Nunca me senti a tua metade, a minha viveu sempre incompleta. Chamavas a noite para que cessasse o dia e pudesses fechar os olhos. E eu, de tanto te chamar, fiquei cansada. Deixei de esperar para não me desiludir. Aprendi a conter o grito dentro de mim e a domar as lágrimas. De tal forma, que nem no teu funeral consegui chorar. As minhas lágrimas já não conhecem o caminho de saída para o exterior.
E agora que a tua comida arrefeceu na mesa, sento-me de novo aqui, junto da tal janela que a planície torna mágica, e dou-me conta de que sinto a tua falta e que tenho saudades de tudo que levei anos a abominar. Devia sofrer – sinto que sim - mas o reservatório da dor há muito se escoou. Estou vazia… Sofre-se até à exaustão mas depois não se sofre mais porque não há mais nada em nós que possa ser ferido.
Alexandra Vaz