20.12.11

 

Uma venda nos olhos... Não vendo os outros com este par de olhos, vejo-me a mim, melhor...

 

1º Passo. Respiração caótica. Expira, expira, expira, só expira! Pelo nariz, boca fechada. Sem ritmar pela música, deixo variar a batida da respiração, às vezes forço essa batida. Ah, seria tão mais fácil se a cabeça tivesse só um botão liga/desliga! Mas que posso fazer se é por aqui o caminho! Vai, vai, ajuda com o corpo, os braços fazem de fole. Chega o abismo, vou morrer! Com tanta expiração não sei por onde entra o ar. Não pode entrar ar! Será que quem inventou isto sabia o que fazia? Abro ligeiramente a boca, bebo um gole. Aldrabei... É para continuar! O tempo avança. “Último minuto”, diz uma voz tocando o meu botão de fogo. Vou todo, então. Sinto desfazer-se a coroa por cima da cabeça, enquanto as lágrimas já se formam no canto dos olhos...

 

2º Passo. Catarse! Explosão! O sonho mais secreto que cada um tem e reprime. Poder ser um louco absoluto por uns minutos. As lágrimas que se formavam jorram agora entre os meus olhos e a venda. Agarro uma almofada, um abraço a mim próprio... Vem mais, não sei bem o que há ali. Violento, assusta! Raiva condenada, mas raiva de quê? Teatro. Deito-me no chão e bato no colchão sem ter razão. Dois murros e as razões aparecem tão rápido que não sei como não me dava conta de que lá estavam. Não sabia que ainda estavas ali... Não sabia que já estavas ali... Foste. Agora mexo o corpo. Apetece-me tremer como se me preparasse para voar. Volta a tristeza, deito-me e choro. Eu sabia que estavas por ali... Assim me encontrou o sinal para o próximo passo.

 

3º Passo. Huu Huu Huu. Entre o céu e os pés no chão, um Huu saído ali abaixo do umbigo. Salto batendo com o pé todo no chão, enquanto os braços se mantêm erguidos ao alto, descobrindo esse som bem no fundo de mim. Assusta a batida forte dos calcanhares no solo. Parece que o corpo se pode desintegrar a qualquer instante. Mas sabe-me bem, cada vez me vai sabendo melhor. Sentir o pulsar daquela vibração pelo corpo acima. Começam-me a doer os ombros... Sei bem o que é, as dores da responsabilidade. A responsabilidade sobre o que está fora, com a qual ainda me entretenho, mais esta nova responsabilidade funda sobre mim próprio. No próximo passo vou passar mal... Esquece o próximo passo! Agora é este e devolve-me o eu.

 

4º Passo. Stop! Parou nesta posição! Sem mexer. Observo primeiro o fluxo de energia correr corpo acima. Mas vêm as dores nos ombros. Os braços começam a baixar um pouco, um pouco mais, baixam mais ainda. Vem o julgamento, o meu julgamento... Não me importa. Vou aproveitar como posso, como sei. Isto é meu, não é de quem inventou a meditação. Observo estas duas forças, a que me leva os braços para baixo e a que os mantêm em cima. Num momento sinto os braços muito em baixo e volto a levantá-los ao alto. E assim fico até a música começar.

 

5º Passo. Dança! Celebração! Milagre! Estou só ali a balançar ao vento do meu ser. Sinto o nascer do sol aparecer por detrás da venda e viro-me para ele. Cai uma lágrima em mim. Feliz por estar vivo. Feliz por estar eu.

 

Um mergulho no lago, nu, e o dia pode começar.

 

Vladimiro Fernandes (articulista convidado)

 

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9.4.10


 


Colocarei o problema de forma simples.


Todos sabem como é fácil e como é difícil viver em sociedade. Todos sabem, ou calculam, como é fácil e como é difícil viver só.


É fácil viver só porque nos teremos libertado dos inúmeros problemas que a convivência nos traz, inevitavelmente.


E é difícil viver só, porque não sabemos viver uns sem os outros (direi, sabiamente à maneira de M. de la Palisse).


Viver em sociedade é fácil - parece que é naturalmente que dependemos uns dos outros no aspecto afectivo e no material. E é difícil pelo mesmo motivo – dependemos uns dos outros se bem que não saibamos viver uns com os outros.


Se fôssemos todos iguais, é provável que não houvesse problemas de coexistência, mas somos tão diferentes que complicamos o nosso relacionamento com dificuldades que muito presumivelmente não merecem que nos ocupemos delas nem que nos preocupemos com elas. Só porque somos diferentes. E porque não aceitamos as diferenças como outras tantas possibilidades, faculdades, poderes.


Gostamos de gozar a nossa liberdade e não queremos saber de fronteiras. Mas não há forma de vivermos uns com os outros em paz e sem fronteiras que limitem a liberdade de cada um. Inventaram-se as regras e as leis para isso que por vezes é penoso – para que não colidamos. Todavia podemos e devemos interagir, nós que habitamos todos o mesmo sítio do universo por muito que o sítio se movimente em rotação e em translação num espaço infinito. E ainda temos desejo de conhecer outros sítios e conviver com habitantes de lugares, para já, desconhecidos.


 


Como proceder então sem conflito?


Considero que no meu mundo há aqueles com quem convivo e que não quero que sejam estrangeiros (a quem tenderei a culpar de todas as faltas), quero conhecê-los bem; e há todos os outros que também são meus vizinhos; há o que acontece à minha volta (e desejo interpretar correctamente); e há o desejo de ausência de sofrimento em mim (o que me permitirá ver com clareza e ajudar os outros a ver). Esquecer-me-ei um pouco de mim própria, bastante, mas aumentarei a minha capacidade de ver mais além e, do mesmo passo, ampliarei o seu, deles, e meu bem-estar.


 


“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, disse Jesus.


Ensinou pelo exemplo – amorosamente. A sua vida foi coerente com a doutrina que pregou, baseada em mandamentos divinos. A transcendência, acentuaram-na os discípulos.


 


Ouso considerar que a filosofia budista tem um sentido mais prático, mais dia-a-dia e talvez mais possível de conciliar com… Ou melhor usa uma linguagem e um método fácil de adoptar na vida de hoje. (Que me perdoem os seguidores, se não é assim). Um método acessível, digo. Mas, na verdade, há um longo caminho espiritual a percorrer.


 


É uma arte de viver aqui agora e pode ajudar-nos nisto que é fundamental para a nossa existência colectiva: sentirmo-nos bem a interagir com o mundo sob poucas regras e barreiras. Bastante próximos. A sentirmo-nos bem e solidários e interessados no que acontece à nossa roda e mais além.


 


Em face da realidade que temos, precisamos de mudar, sem dúvida. Mudar a visão do mundo, a maneira de estar, a maneira de pensar. Mudaremos primeiramente o jeito de pensar. Compreenderemos o que se passa connosco. Por que agimos de modo egoísta. E por que razão, isso, nos faz sofrer.


Descobriremos as causas do nosso sofrimento e do dos outros e tentaremos suprimi-lo. Dado que a ignorância das razões do sofrimento dos outros nos leva a distorcer a realidade e, ao contrário, o conhecimento das causas nos leva a uma consciência clara do que se passa… interessa-nos saber e fazer uma apreciação justa da realidade.


 


Começo por me interrogar se é a nossa natureza sermos egoístas. Se é a educação que nos leva a querer ser de outro modo e por isso sofremos. Sentimo-nos bem quando praticamos o bem. E sentimo-nos mal quando fazemos sofrer e quando vemos sofrer, é certo.


 


E acontece termos necessidade de ser altruístas por muitas razões inclusivamente económicas. Por outro lado, sabemos ser possível modificar a nossa forma de pensar, treinando a mente. Esse treino pode levar a uma alteração de funcionamento do cérebro, dizem os sábios.


 


Num momento extraordinário como o recente enorme desastre na ilha da Madeira, toda a gente se solidariza e contribui e trabalha para minimizar o sofrimento dos atingidos. As barreiras são abatidas e todos procedem de forma altruísta.


Sabemos que não é uma posição rotineira, comum.


Pensamos então que, se é possível em certas circunstâncias modificar a postura habitual, egoísta, por que não ser generoso mesmo fora de um contexto de cataclismo? É necessário transformar a nossa relação com o sofrimento, nosso e alheio, quero dizer, sermos naturalmente generosos e solidários e empenhados.


 


Uma forma de conseguir a mudança na nossa maneira de pensar é pela meditação tal como a entende a filosofia budista e de que tenho falado com frequência no meu blogue, O fio de Ariadne.


 


Meditar visa substituir a “urgência mental” em que quase sempre nos encontramos por uma paz profunda. E essa paz, que é nossa, tende a expandir-se e a tomar todo o espaço à nossa volta. E a ser passada a outras pessoas, criando um clima propício à clara compreensão dos problemas. Importa-nos esse estado de espírito, sereno, que nos levará à consciência e ao conhecimento.


 


Uma meditação de alguns minutos é a pausa que permite quebrar a cadeia dos pensamentos que provocam agitação interior e se encadeiam uns nos outros sem fim. Naturalmente, sentimo-nos mais livres e abertos nesses momentos. Com certeza, sentimo-nos em paz. E generosos.


A nossa maneira habitual de pensar é transformada, porque do emaranhado confuso que eram os nossos pensamentos antes de os disciplinarmos pela meditação, sentimos essa tentativa de silêncio como uma pacificação. Possivelmente de pronto voltamos à agitação.


 


Contudo, ficámos a saber o que é a paz e a calma interior a que aspiramos; e que nos é possível alcançá-la já que conhecemos as circunstâncias que a provocam. Talvez compreendamos a “verdadeira natureza das coisas”, isto é, o que elas são antes que as “nossas fabricações mentais” se sobreponham e as modifiquem.


 


A importância de disciplinar ou de ordenar os pensamentos, ou antes, a sua escolha (o que mais me seduz) é que, possibilitando que uns me ocupem e eliminando outros, deixo espaço na mente para desenvolver e elaborar ideias curiosas, permitir que elas me conquistem - deixo-me conquistar por elas, e trabalhar (com elas) no sentido da invenção, da descoberta, da realização da obra.


 


O meu desejo é não me deixar dominar por pensamentos que embaraçam a minha vida de forma escusada e inútil. Que se encaracolam e se colam a mim. Esses indesejáveis… devo exclui-los, se aspiro a um conforto. E fico, não apática, mas com espaço que preencho rapidamente com ideias que desejo construtivas se pretendo realizar alguma coisa que tenha importância para a minha vida, e para a vida.


Têm como referência, em geral, análises excessivas de palavras, de gestos, de entonações de outras vozes que quero a todo o custo interpretar à minha maneira. Mas, ao querer decifrá-los, estou muito provavelmente a culpar outros das minhas falhas, e logo sou levada por essa análise equivocada para situações de relacionamento muito delicadas e mesmo dramáticas, sempre infelizes. Para situações de conflito que levam a agressividade e a violência. Que noutra dimensão conduzem à guerra.


Porque as acções que empreendo, sejam quais forem, resultam dos meus pensamentos. E são proveitosas ou nocivas de acordo com esses pensamentos e com o ambiente, tranquilo ou agitado, em que nasceram.


O que significa que a importância de um acontecimento depende da minha atitude perante ele, não tanto do acontecimento em si. É possível que reaja de forma emocional, num primeiro momento mas, se em seguida for capaz de julgar tranquilamente, esmiuçando e diferenciando, encontrarei o ponto de clareza que me vai permitir actuar de forma justa. De maneira nenhuma, ficarei indiferente.


 


Afirmo de novo que a meditação me permite divisar que ideias… arriscarei excluir do meu espírito e as que devo acarinhar. Serenamente.


Continuo sem saber se somos naturalmente egoístas ou naturalmente altruístas – isso deixou de ser importante desde que acredito que é possível alterar a estrutura de pensamento.


Cultivar e desenvolver qualidades que permitam construir uma sociedade menos conflituosa, mais afectuosa, mais culta é realizável.


 


Direi que da abordagem… não ingénua mas confiante, aberta e generosa da humanidade, da realidade, da natureza das coisas… a uma sociedade menos conflituosa, é um passo de lógica ariadneana.


 


Não estou a falar de um sonho com que se ocupam meia dúzia de pessoas de boa vontade, desejosas de perceber e de melhorar o mundo. Sinto que vale a pena e é urgente estudar este pensamento e experimentar as práticas aconselhadas.


 


Zilda Cardoso


(escritora, convidada do MiL RAZõES...)


 

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